terça-feira, 19 de agosto de 2008

A vaca do sertão (Sebastião Nery - Tribuna da Imprensa)

Manoel Novaes fazia comício em Irecê, nos estorricados sertões da Bahia. Um candidato a vereador pegou o microfone:

- Minha gente, quem deu a nossa perfuratriz?
- Foi Novaes!
- O que é a perfuratriz faz?
- Tira água do chão e dá água para nós.
- E a vaca que dá leite para nossos filhos, bebe o quê?
- Bebe a água que a perfuratriz tira do chão.
- Então, quem dá leite a nossos filhos?
- É Novaes!
- Portanto, vamos votar em Novaes, a vaca do sertão!
Manoel Novaes

Durante mais de meio século, Manoel Novaes, nascido em Pernambuco e a vida inteira vivida na Bahia, cujo centenário foi em 6 de março último, alto, quase dois metros, voz de trovoada, cara grande e generosa de sertanejo, olhos ensolarados, foi exatamente isso: a vaca santa, leite e esperança, emprego e trabalho, no infinito sertão do São Francisco.

Manoel Novaes foi uma vida a serviço de um rio muito longo e um sertão muito seco. Médico, estava na Constituinte de 34. Na de 46, também. E conseguiu ver aprovado 1% da receita tributária da União para aplicação no Vale do São Francisco. Daí nasceu a Codevasf (Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco). Já advertia Novaes:

"Cometeremos um erro insanável se adiarmos por mais tempo seus problemas. As precipitações pluviométricas da região se tornam irregulares de ano a ano, as condições de navegabilidade pioram, as erosões das margens alargam e obstruem o leito, a evaporação das águas aumenta".
Ayres Brito

Sessenta anos depois, o São Francisco volta a ser o centro de um aflito debate nacional. O governo apresentou um projeto bilionário para transpor uma parte de suas águas e distribuí-las por estados do Nordeste. Tudo certo, se o rio tivesse saúde. Mas o rio está cada dia mais doente. Doente não doa sangue. Precisa de sangue. O ministro Carlos Ayres Brito, do Supremo Tribunal, sergipano, nascido às margens do rio, protesta:

"Promover a transposição de águas do São Francisco no contexto atual equivale a fazer transfusão de sangue de um doente terminal na UTI".

O assoreamento aumenta a cada dia, a ponto de hoje toda a extensão do rio possuir imensos bancos de areia, separados por estreitas vias por onde só conseguem passar pequenas lanchas de passeio. É um rio esvaído. E o governo quer matá-lo, a serviço dos empresários da irrigação.
São Francisco

Antonio Conselheiro disse que o sertão ia virar mar e o mar virar sertão. Já começou. Da hidrelétrica de Xingó até a foz do rio são 208 quilômetros, separando Alagoas e Sergipe. O leito do rio está quase todo transformado em um imenso mar de areia, bancos de areia. A 135 quilômetros da foz se pescam peixes de alto mar, como o robalo.

É o avanço das águas do oceano. A ponte que liga Sergipe a Alagoas, a 45 quilômetros da foz, até há poucos anos tinha uma lamina de água de 45 a 55 metros. Hoje, qualquer um pode atravessar o rio a pé, de moto ou a cavalo. As águas do rio chegam ao mar apenas por dois pequenos canais nos lados extremos da ponte. Quem duvidar, é só ir lá ver o desastre.
Transposição

De repente, o governo parou de falar na transposição. Há um mistério. Ninguém sabe como anda, se anda, se desanda, o projeto da transposição. O governo deve estar recuando por causa das mais de 20 ações que estão no Supremo Tribunal. Em voto, como sempre culto e brilhante, numa delas, o ministro Ayres Brito apontou a inviabilidade:

- O modo como o governo promove a licitação das obras da transposição agride ostensivamente os princípios constitucionais.

O fato de o São Francisco ser um rio nacional, que cruza cinco estados, implica em que qualquer obra nele realizada, visando beneficiar terceiros, tem que ter prévia autorização do Senado. E não houve. E o governo de Minas denunciou que não foi feito o Rima (Relatório de Impacto Ambiental) na bacia do rio, à margem dos estados por onde passa.
João Alves

Coordenado pelo ex-governador de Sergipe, João Alves, engenheiro especialista em recursos hídricos e com vários livros publicados sobre energia, rios, águas, chuvas e secas do Nordeste, e com estudos de técnicos, professores, ecologistas e membros do Ministério Publico, será lançado um livro que deverá chamar-se "Verdades e mentiras sobre o São Francisco".

É um estudo minucioso, detalhado, completo. Vai mostrar "o que o rio sofreu, pelo descaso das autoridades brasileiras, sem os mais elementares cuidados para sua preservação, com o surgimento de mais de 500 municípios às suas margens, o desmatamento indiscriminado da vegetação ciliar, o lançamento dos esgotos `in natura' das cidades, a instalação de indústrias sem a mínima vigilância ecológica, lançando todo tipo de detritos, e os efeitos destrutivos das explorações minerais e, mais recentemente, as águas contaminadas com agrotóxicos de irrigação".

Até o Banco Mundial vetou o projeto e se negou a financiá-lo, alegando que "com uma fração dos recursos (R$ 6,5 bilhões, que logo devem chegar a R$ 10 bilhões) que serão alocados, se poderia levar água potável a todos os habitantes do semi-arido brasileiro", do Nordeste. É o mensalão fluvial.

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domingo, 10 de agosto de 2008

Sem protestos, transposição do São Francisco já começou

Em Cabrobó (PE), a igreja onde o bispo d. Luiz Flávio Cappio fez greve de fome contra a transposição do Rio São Francisco está fechada.

Não há mais protestos contra a obra e as máquinas do Exército abrem em ritmo acelerado dois canais que vão desviar as águas do rio, relatam os enviados especiais Ribamar Oliveira e Wilson Pedrosa.

Já foi escavado 1,6 milhão de m3 de terra.


(O Estado de São Paulo - Sinopse Radiobrás)